quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Ingratidão



A ingratidão é um dos frutos mais imediatos do egoísmo; revolta sempre os corações honestos"

Vovó Maria fumegava seu pito e batia seu pé ao som da curimba enquanto observava o terreiro, onde os cambonos movimentavam-se atendendo aos pretos velhos e aos consulentes.
Mandingueira, acostumada a enfrentar de tudo um pouco nos trabalhos de magia, sabia perfeitamente como o mal agia tentando disseminar o esforço do bem.
Sob variadas formas, as trevas vagavam por ali também. Alguns em busca de socorro; outros mal intencionados, debochavam dos trabalhadores da luz, muitos chegavam grupados no corpo das pessoas, qual parasitas sugando sua vitalidade. Outros, por sobre seus ombros, arqueando e causando dores nos hospedeiros, ou amarrados nos tornozelos, arrastavam-se com gemidos de dor, fora os tantos que eram barrados pela guarda do local, ainda na porta do terreiro e que, lá de fora, esbravejavam palavrões.
Da mesma forma, o movimento dos exus e outros falangeiros se fazia intenso no lado astral do ambiente, para que, dentro do merecimento de cada espírito, pudessem ser encaminhados.
Uma senhora com ares de madame se aproximou da preta velha para receber atendimento, vinha arrastando uma perna que mantinha enfaixada.
" Saravá, filha - falou Vovó Maria, enquanto desifetava o campo magnético da mulher com um galho verde, além de soprar a fumaça do palheiro em direção ao seu abdome, o que fez com que a mulher demonstrasse nojo em sua fisionomia.
Figindo ignorar, a preta velha, cantarolando, continuou a sua limpeza. Riscando um ponto com sua pemba no chão do terreiro, pediu que a mulher colocasse sobre ele a perna ferida.
" Será que não vai pedir o que tenho?" pensou a mulher, já arrependida por esta ali naquele lugar desagradável. " Vou sair daqui impregnada por estes cheiros!"
Vovó Maria sorriu, pois captara o pensamento da mulher, mas preferiu ignorar tudo isso. O que a mulher não sabia era a gravidade real do seu caso, ou seja, aquilo que não aparecia no físico, se la pudesse ver o que estava ficaria muito enojada. Na contraparte energética, abundavam larvas que se abasteciam da vitalidade do que já era uma enorme ferida e que breve irromperia também no físico. Além disso, uma entidade espiritual, em quase total deformação, mantinha-se algemada à sua perna, nutrindo, assim, essas larvras astrais. Para qualquer neófilo, aquilo mais parecia um cadáver retirado da tumba mortal, inclusive pelo mau cheiro que exalava.
Com a destreza de um mago, a preta velha sabia como desvincular e trasmutar toda essa parafernália de energia densas, libertando e socorrendo a entidade escravizada a ela.
Feitos os devidos curativos no corpo energético da mulher, Vovó Maria, que a visão dos encarnados não fez mais que um benzimento com ervas e algumas baforadas de palheiro, dirigiu-se agora com voz firme à consulente:
- Preta Velha até aqui ouviu calada o que a filha pensou a respeito do seu trabalho, agora preciso abrir minhas tramelas e puxar sua orelha.
Ouvindo isso, a mulher afastou-se um pouco da entidade, assustada com a possibilidade de que ela viesse mesmo a lhe puxar a orelha.
Escutou o que pensei? Ah, essa é boa, ela está blefando comigo, pensou novamente a mulher.
- Se a madame não acredita em nosso trabalho, por que veio aqui buscar ajuda? Filha, não estamos aqui enganando ninguém, procuramos fazer o que é possível, dentro do merecimento de cada um.
- É que me recomendaram vir me benzer, mas eu não gosto muito dessas coisas... e só veio porque está desesperada de dor e a medicina não lhe deu alento, não foi filha? complementou a preta velha.
- Os médicos querem drenar a perna e eu fiquei com medo, pois nos exames não aparece nada, mas a dor estava insuportável.
- Estava? Por que, a dor já acalmou?
- É, agora acalmou, parece que minha perna está amortecida.
- E está mesmo, eu fiz um curativo.
A mulher, olhando a perna e não vendo curativo nenhum, já estava pronta para emitir um pensamento de desconfiança quando a preta velha interferiu:
- Vá para sua casa, filha, e amanhã bem cedo colha uma rosa do seu jardim, ainda com orvalho, e lave a sua perna com ela, na água corrente . Ao meio-dia o inchaço vai sumir e sua perna estará curada. Não ousando mais desconfiar, ela agradeceu e já estava saindo quando a preta velha a chamou e disse:
- Não se esqueça de pagar a promessa que fez pra Sinhá Maria, antes dela morrer... Arregalando os olhos, a mulher quase enfartou e tratou de sair daquele lugar imediatamente.
O cambono, que a tudo assistia calado, não aguentando a curiosidade perguntou que promessa foi essa.
- Meu menino, o que nós escondemos dos homens fica gravado no mundo dos espíritos. Essa filha, herdeira de um carma bastante pesado por ter sido dona de escravos em vida passada e, principalmente, por te-los ferido a ferro e fogo, imprimindo sua marca na panturrilha dos negros, recebeu nesta encarnação, como sua fiel cozinheira, uma negra chamada Sinhá Maria. Esse espírito mantinha laços de carinho profundo pela madame desde o tempo da escravidão, quando foi sua "Bá" e, por isso, única poupada se suas maldades. Nessa encarnação, juntaram-se novamente no intuito de que a bondosa negra pudesse despertar na mulher um pouco de humildade, para que esta tivesse a oportunidade de ressarcir os débitos, diante da necessidade que surgiria de auxiliar alguém envolvido na trama cármico.
Sinhá Maria, acometida de deficiência respiratória, antes de desencarnar solicitou à sua patroa que, na sua falta, assistisse seu esposo, que era paraplégico, faltando-lhe as duas pernas.
Deixou para isso todas as suas economias de anos a fio trabalho e so lhe pediu que mantivesse com isso a alimentação e os medicamentos, mas na primeira vez que ela foi até a favela onde morava o homem, desistiu da ajuda, pois aquele não era o seu palco. Tratou logo de ajustar uma vizinha do barraco, dando-lhe todo o dinheiro que Sinhá havia deixado, com a promessa de cuidar do pobre homem. Não é preciso dizer que rumo tomaram as economias da pobre negra; em pouco tempo, para evitar que ele morresse à míngua, a Asistência Social o internou em asilo público lá ela aguardava sua amada para buscá-lo, tirando-o do sofrimeto do corpo físico. Nenhuma visita, nenhum cuidado especial. A madame se havia esquecido da promessa, eu so fiz lembrá-la para que não tenha que voltar aqui com as duas pernas inválidas. A Lei so nos cobra o que é de direito, mas ela é infatível, quando mas atrasamos o pagamento de nossas dívidas, maiores elas ficam, por isso, camboninho, nega velha sempre diz para os filhos que a caridade é moeda valiosa que todos possuímos, mas que poucos de nós usam. Se não acordamos sozinhos, na hora exata a vida liga o despertador e, às vezes, acordamos assustados com a barulheira que ele faz... eh, eh,eh... Entendeu, meu menino?
- Sim, minha mãe. Lembrei que tenho de visitar meu avô que está no asilo...
Sorrindo e balançando a cabeça a bondosa preta velha falou com seus botões:
- Nega véia matô dos coelhos com uma cajada so... eh,eh...
E, batendo o pé no chão, fumando seu pito e cantarolando, prossegiu ela, socorrendo e curando até que, junto aos demais, voltou para as bandas de Aruanda.

Extraído do Livro Causos de Umbanda

Nenhum comentário:

Postar um comentário